Atletas do futebol chamam a atenção – positiva e negativamente – ao fugirem do padrão encontrado nos clubes brasileiros e se dividem entre deboche e aceitação
Universidade, curso de idiomas, gosto por artes, teatro e leitura. Assuntos e rotinas naturais, não fossem estes os interesses de alguns jogadores de futebol. Os ingredientes que formam o estereótipo do boleiro brasileiro não comportam essas características, destoantes do que é visto nos clubes. Por isso, situações constrangedoras, de intimidação e discriminação já fizeram parte da vida de diversos atletas.
Natural de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, Getúlio Vargas soube aproveitar as oportunidades que o futebol pôde oferecer. Morou na Europa e na África. Acumulou experiências, incorporou novas línguas e cresceu culturalmente. Só não contava que o seu conhecimento viraria motivo de gozação dos próprios companheiros de equipe.
Natural de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, Getúlio Vargas soube aproveitar as oportunidades que o futebol pôde oferecer. Morou na Europa e na África. Acumulou experiências, incorporou novas línguas e cresceu culturalmente. Só não contava que o seu conhecimento viraria motivo de gozação dos próprios companheiros de equipe.
– Ano passado, desembarquei em Brasília, fui almoçar no aeroporto e tinha uma delegação sul-africana. Eles perguntaram de onde éramos, e, como ninguém falava inglês, um amigo me chamou para responder. Falei que eu tinha jogado na África do Sul, trocamos ideias. Tinha gente do Senegal, Camarões... Depois, falaram francês, que não domino, mas me viro porque morei na Bélgica. Isso acabou com meu ambiente no grupo. Naquele momento, uns seis ou oito me olharam torto. Ouvi comentários do tipo "quer ser intelectual e jogador de futebol", algo nesse sentido. Vim de família humilde. O futebol me deu oportunidades, então procurei amadurecer e crescer – diz ele, sem ar de superioridade.
Cria do Flamengo, de onde saiu em 2009, o goleiro passou lá fora por Westerlo (Bélgica), Vitória de Setubal (Portugal) e Orlando Pirates (África do Sul), mas hoje está sem clube – disputou o Campeonato Carioca de 2014 pelo Boavista, sendo campeão da Taça Rio (sem a participação dos quatro grandes), mas não renovou o contrato ao fim da competição. Atualmente fazendo cursos de Jornalismo Esportivo e Marketing Estratégico, ele conta que esta não foi a primeira vez que se deparou com olhares de reprovação. Este ano, vivenciou episódio parecido em outro clube, cujo nome prefere não citar.
Getúlio Vargas com a apresentadora e repórter do SporTV Vanessa Riche (Foto: Arquivo Pessoal)
– Estava fazendo um curso do SporTV e aproveitei a concentração para fazer um programete. O pessoal me chamou para fazer alguma coisa, não sei se era para jogar videogame, e falei que tinha de estudar. Aí disseram: "Quer ser jogador de futebol ou escritor?" O Jefferson, que foi do Vasco, me defendeu: "Vocês estão de sacanagem, né? Vão implicar por ele querer estudar?". Não foi algo acintoso como da outra vez, mas via três ou quatro falando: "Filhinho de papai, criado pela avó." No futebol há a mentalidade do boleirão, que se veste e se comporta como tal. Se você foge do estereótipo, percebe olhares diferentes.
Volante do Vasco, Pedro Ken foi incentivado pelos pais a estudar enquanto tentava a carreira no futebol. Jamais passou fome. Nem por isso, deixou de enfrentar percalços para se tornar um profissional da bola. Mas não era bem assim que ex-companheiros da base o viam.
– Já falaram coisa do tipo: "Você não precisa, está com a vida ganha. Quando passar por dificuldades, não irá aguentar, vai largar." Diziam que o futebol não era vida para mim, ouvi de treinador que eu não me tornaria profissional. Passei por dificuldades, mas as enfrentei, como qualquer outro jogador. Foi uma situação de exceção, esporádica. Isso nunca me abalou. É o que falo: não interessa de onde a pessoa veio, a sua condição social, o que importa é a personalidade, o caráter, o talento e o mérito por chegar aonde chegou. E isso tem que acabar, esses preconceitos bobos que atrapalham o futebol e outras coisas da vida.
Volante do Vasco, Pedro Ken foi incentivado pelos pais a estudar enquanto tentava a carreira no futebol. Jamais passou fome. Nem por isso, deixou de enfrentar percalços para se tornar um profissional da bola. Mas não era bem assim que ex-companheiros da base o viam.
– Já falaram coisa do tipo: "Você não precisa, está com a vida ganha. Quando passar por dificuldades, não irá aguentar, vai largar." Diziam que o futebol não era vida para mim, ouvi de treinador que eu não me tornaria profissional. Passei por dificuldades, mas as enfrentei, como qualquer outro jogador. Foi uma situação de exceção, esporádica. Isso nunca me abalou. É o que falo: não interessa de onde a pessoa veio, a sua condição social, o que importa é a personalidade, o caráter, o talento e o mérito por chegar aonde chegou. E isso tem que acabar, esses preconceitos bobos que atrapalham o futebol e outras coisas da vida.
O atleta cruz-maltino ainda cultiva as amizades construídas nos tempos de escola. Namora uma médica, é dono de um restaurante de comida japonesa e de uma clínica que oferece tratamento contra o cigarro, em Curitiba, sua cidade natal. Apesar das diferenças para o "estilo boleiro", se adapta com certa facilidade.
– Jogo videogame com o pessoal, escuto pagode ou música que eles gostem, mesmo não sendo a minha preferência. Sou eclético. Cresci ouvindo Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones com o meu pai, mas consigo me adaptar, ir aos churrascos... Quando se fala em jogador, a maioria das pessoas tem uma imagem negativa, de pessoas descompromissadas, que só gostam de festa, bagunça, mulherada e bebida, como se não estivessem nem aí. Na verdade, a maioria não é assim – comentou o atleta, que já viajou por conta própria para lugares como Peru e Cuba.
– Jogo videogame com o pessoal, escuto pagode ou música que eles gostem, mesmo não sendo a minha preferência. Sou eclético. Cresci ouvindo Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones com o meu pai, mas consigo me adaptar, ir aos churrascos... Quando se fala em jogador, a maioria das pessoas tem uma imagem negativa, de pessoas descompromissadas, que só gostam de festa, bagunça, mulherada e bebida, como se não estivessem nem aí. Na verdade, a maioria não é assim – comentou o atleta, que já viajou por conta própria para lugares como Peru e Cuba.
Ricardo Berna recebe placa alusiva à conclusão de curso de gestão esportiva (Foto: Arquivo Pessoal)
Bicampeão brasileiro com o Fluminense, Ricardo Berna faz parte do seleto grupo de jogadores que tem ensino superior completo. Formado em Educação Física desde 2010, o goleiro, que morou no Japão aos 14 anos de idade, já se sentiu excluído do mundo da bola. Por ser tímido, inclusive, teve de encarar uma arma pouco usada para se enturmar: o conhecimento, o que não foi tão bem recebido.
– Por ser introvertido, sentia momentos que eu precisava interagir. E quando tentava, era através do conhecimento. Era a forma que encontrava. Só que, às vezes, isso não era interpretado da forma que eu gostaria. Eu ouvia: "Lá vem a explicação da situação." A minha intenção era só interagir, não queria mostrar que era entendedor. Uma coisa que me falaram e que incomodou bastante, mas não incomoda mais, foi uma frase dita por um certo alguém. Disse que eu era o cara mais inteligente e mais burro do mundo. Inteligente pelo conhecimento adquirido, mas burro por não agir como ele para buscar os ideais dentro da profissão – recorda Berna, sem citar o nome do clube onde o fato se desenrolou.
– Por ser introvertido, sentia momentos que eu precisava interagir. E quando tentava, era através do conhecimento. Era a forma que encontrava. Só que, às vezes, isso não era interpretado da forma que eu gostaria. Eu ouvia: "Lá vem a explicação da situação." A minha intenção era só interagir, não queria mostrar que era entendedor. Uma coisa que me falaram e que incomodou bastante, mas não incomoda mais, foi uma frase dita por um certo alguém. Disse que eu era o cara mais inteligente e mais burro do mundo. Inteligente pelo conhecimento adquirido, mas burro por não agir como ele para buscar os ideais dentro da profissão – recorda Berna, sem citar o nome do clube onde o fato se desenrolou.
Devorador de livros e fã de filmes, Berna conta que, para se poupar de fatos como esse, evitava se expor. Entretanto, ressalta que não criou inimizades no futebol e relembra com carinho a presença de ex-companheiros do Fluminense em sua colação de grau.
– Era uma questão pessoal. Para poder fazer o que gostava, num ambiente que não era tão natural, eu ficava na minha. Tinha a questão do estudo e dos meus ideais pensando no futuro. Uma coisa que marcou muito foi ver os meus colegas no dia que me formei. Fred, Sobis, Diguinho, Rafael Moura e Marquinho foram lá. É difícil conciliar estudo e futebol pela carga de treinamento, e eles me incentivaram bastante – afirmou o paulista de 35 anos, atualmente Náutico e que, além do Fluminense, tem também América-MG, Guarani e Corinthians no currículo.
– Era uma questão pessoal. Para poder fazer o que gostava, num ambiente que não era tão natural, eu ficava na minha. Tinha a questão do estudo e dos meus ideais pensando no futuro. Uma coisa que marcou muito foi ver os meus colegas no dia que me formei. Fred, Sobis, Diguinho, Rafael Moura e Marquinho foram lá. É difícil conciliar estudo e futebol pela carga de treinamento, e eles me incentivaram bastante – afirmou o paulista de 35 anos, atualmente Náutico e que, além do Fluminense, tem também América-MG, Guarani e Corinthians no currículo.
MUDANÇA
O ex-Fluminense Igor Julião em ação pelo Sporting Kansas
City (Foto: Divulgação / Site Oficial Sporting Kansas City)
Se os jogadores conseguem perceber que, gradativamente, hábitos outrora incomuns já não assustam mais, integrantes da nova geração contribuem para comprovar a tese. O lateral-direito Igor Julião, de 20 anos, não se veste como boleiro. Criado em Bento Ribeiro, no Rio de Janeiro, o atleta – atualmente no Kansas Sporting City, que disputa a Major League Soccer, dos EUA – prefere o peso dos livros e visitas a museus. Contudo, assegura que nunca foi vítima de comentários maldosos.
– Não gosto desse estilo, de cordão para fora, relógio de ouro, boné de aba reta. Respeito a forma como se vestem, mas acho feio. É gosto. Toco pandeiro e tantã, o mínimo para um garoto do subúrbio (risos). Desde pequeno, meu pai levava a mim e ao meu irmão a museus. Gosto do Renascimento Italiano, de Da Vinci, Michelangelo e Botticelli. O papel de parede do meu celular é o Juízo Final, da Capela Sistina. Sonho ir ao Vaticano (na Itália), ao Louvre (em Paris). Sei lidar com o pessoal do futebol, e eles sempre me respeitaram bastante. Quando estou com pessoas que não se interessam por História ou coisa assim, não converso sobre o assunto, falo de outras coisas, como tecnologia. Sou viciado em videogame – afirma o ala, cria da base do Fluminense.
– Não gosto desse estilo, de cordão para fora, relógio de ouro, boné de aba reta. Respeito a forma como se vestem, mas acho feio. É gosto. Toco pandeiro e tantã, o mínimo para um garoto do subúrbio (risos). Desde pequeno, meu pai levava a mim e ao meu irmão a museus. Gosto do Renascimento Italiano, de Da Vinci, Michelangelo e Botticelli. O papel de parede do meu celular é o Juízo Final, da Capela Sistina. Sonho ir ao Vaticano (na Itália), ao Louvre (em Paris). Sei lidar com o pessoal do futebol, e eles sempre me respeitaram bastante. Quando estou com pessoas que não se interessam por História ou coisa assim, não converso sobre o assunto, falo de outras coisas, como tecnologia. Sou viciado em videogame – afirma o ala, cria da base do Fluminense.
Estudante de Psicologia desde 2011, Luis Guilherme, goleiro do Botafogo, convive harmonicamente num ambiente em que se fala sobre Freud e Lacan ao mesmo tempo em que está inserido noutro onde os assuntos são mais rasos. E, bem como Julião, garante que é compreendido em ambos os locais.
– O fato de estar estudando não gera repulsa, mas uma certa surpresa, do futebol ver um jogador profissional no mundo acadêmico, e vice-versa. Estudar deveria ser uma regra. Quanto maior a quantidade de atletas estudando, com nível superior, melhor para a juventude seguir essa diretriz. Isso não é uma situação corriqueira, infelizmente. Espero que no futuro seja – torce o jovem, que toca violão e é fã de política, Sociologia e Filosofia.
– O fato de estar estudando não gera repulsa, mas uma certa surpresa, do futebol ver um jogador profissional no mundo acadêmico, e vice-versa. Estudar deveria ser uma regra. Quanto maior a quantidade de atletas estudando, com nível superior, melhor para a juventude seguir essa diretriz. Isso não é uma situação corriqueira, infelizmente. Espero que no futuro seja – torce o jovem, que toca violão e é fã de política, Sociologia e Filosofia.
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